Há pouco mais de um ano, o escritor Mário Sérgio de Melo promoveu o lançamento virtual simultâneo de três livros inéditos: Tercetos Excluídos (poemas), Perrengas Princesinas II (crônicas) e A Desgraceira de Tião Pernambuco e Maria Tupinambá (romance). Pela plataforma Google Meet (7/12/2020), o encontro virtual em plena pandemia, além da conversa com os participantes e apresentação dos livros, mostrou como proceder para obtê-los. Acredito que eu tenha participado de todos os lançamentos literários do agora confrade Mario Sérgio (na Academia de Letras dos Campos Gerais, desde 2019). Fomos colegas na Universidade Estadual de Ponta Grossa, Mário docente de Geologia e eu, de Literatura Brasileira. Acredito que o nosso primeiro encontro tenha sido na Editora UEPG, por conta da revista acadêmica Publicatio UEPG, ou pelo Concurso Nacional de Poesias: O mundo do trabalho promovido pela Unitrabalho, Associação Brasileira de Poetas e Escritores, Departamento de Letras Vernáculas e Departamento de Serviço Social, ambos da UEPG, há vinte anos. Como eu supervisionava a editora, acabei organizando o livro com as poesias selecionadas, uma delas era do Mário Sérgio, a enternecedora “Os ramos de violeta”. Há vinte anos, ele já se embrenhava por densas florestas poéticas.
O escritor, geólogo formado pela Universidade de São Paulo (USP), trabalhou como docente de Geologia, Solos e Meio Ambiente na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), de 1996 a 2019. Além dos títulos na área técnica, já publicou oito livros de poesias, três de crônicas, duas antologias poéticas e lança pela primeira vez um romance: A desgraceira de Tião Pernambuco e Maria Tupinambá. O romance, em 248 páginas, narra a saga de uma família nordestina retirante para a Amazônia, que muitos anos depois, forçada pelas vicissitudes, vai morar na periferia de São Paulo. Aborda temas sociais e ambientais. Integra a Série Conexão da Editora Estúdio Texto. É prefaciado pelo jornalista, geógrafo e escritor Mouzar Benedito.
Poucos dias após o lançamento virtual, fui à casa de Mário Sérgio para adquirir meus exemplares. Ao me entregar A desgraceira..., falou-me que gostaria de saber a minha opinião após a leitura. Na dedicatória, “esta tão realista ficção talvez nos desperte mais que a verdade escancarada. Será?”
Aqui está, um ano depois, após leituras cuidadosas, uma tentativa de deslindar “os macinhos de violetas amarrados com fio de amarrilho numa cesta de bambu traçado”...¹ Pois bem, antes do índice, logo após a falsa folha de rosto e a página com a reprodução em marca d´água da belíssima ilustração de Law Melo para a capa – o suculento jambo-vermelho de Maria Tupinambá? – um mapa do Brasil, didaticamente, resenha as principais locações do romance. De Ouricuri, no sertão de Pernambuco, a Altamira, no Pará, daí a Humaitá, no Amazonas, e Porto Velho, em Rondônia, o Rio Aripuanã, o Roosevelt... No “extremo” sul, São Paulo. Algumas páginas adiante, o mapa detalha a região amazônica, localizando Aripuanã e a Fazenda Surubim, na Amazônia mato-grossense. Assim, um mapa orienta, coordena, é representação. Real ficção?
Pois bem, ficaram em “capítulos anteriores” d´A desgraceira, a graça das paisagens brasileiras celebradas: “são tantas farinhas na feira de Caruaru”, “tesourinhas tresloucadas”², “as folhas da generosa palmeira açaí”, “algumas mangueiras e um imenso guapuruvu”³, “entregou-se ao rio”⁴, mas um outro brasil já se insinuava por trás da “imponente sumaumeira, a ‘árvore-da-vida’”⁵ ... Rapidamente estes cenários se refazem e trazem paisagens de outros brasis, com figuras humanas e formas peculiares de cultura.
A desgraceira de Tião Pernambuco e Maria Tupinambá mobiliza uma erudição admirável, o que não surpreende tendo em vista a competência e a ilustração de Mário Sérgio de Melo, pois representa um registro perspicaz da pluralidade sócio-histórica brasileira. Com facilidade podem ser percebidas as aproximações entre romance e jornalismo, que deságuam – para empregar uma metáfora pertinente – no romance-reportagem, gênero praticamente inaugurado com Os Sertões, de Euclides da Cunha, de 1902. Aliás, ambos trazem para o foco situações, personagens e paisagens completamente distintos das paisagens, figuras e situações que consolidaram o romance urbano.
Da mesma forma que Graciliano Ramos o faz, por exemplo em Vidas Secas, o Nordeste ressequido ganha cidadania literária, e mostra os brasileiros de um país em que a luta pela sobrevivência tem cores fortes e violentas. É um romance de tensão crítica em que o herói se opõe e resiste penosamene às pressões da natureza e do meio social, a sua “desgraceira”. Tião Pernambuco e Maria Tupinambá podem ser lidos como Fabiano, Sinhá Vitória e filhos em seu êxodo de retirantes. Por outro lado, as vidas secas são sempre umedecidas pelas esperanças tênues de sombra e de vida, ainda que precárias como a vida severina que se denuncia posteriormente no belo poema de João Cabral de Melo Neto.
Da mesma forma que Morte e Vida Severina busca construir uma consciência nacional justamente a partir do limite que a realidade impõe à nossa obstinação por um amadurecimento como povo histórico, a saga de Tião e Maria, e a de todos que rodeiam o casal, é a da desgraceira (não é à toa que o brasileirismo protagoniza o título do romance). Morte e Vida e A desgraceira de Tião Pernambuco e Maria Tupinambá abordam a nação a partir das margens, de quem está marginalizado: a região Nordeste e, dentro dela, o drama dos retirantes e todas as suas desditas. Equivale a dizer, aborda o nacional a partir de um ponto de vista crítico, de que os dois Melo não abrem mão, a temática social.
Não obstante as particularidades inerentes aos diferentes gêneros literários praticados no caso em tela – o romance e a poesia –, eles se tangenciam ao mergulharem nas águas que desaguam as graves lesões que a vida em sociedade produz na composição do ser humano: conseguem com isso alcançar uma densidade moral e uma verdade histórica muito mais profunda. E atual, pressente-se presente! Não obstante o drama, o desalento, a desventura, há sempre um novo dia, um nascimento, e o renascimento da esperança ao chegar a nova do nascimento de um menino, signo de que algo resiste à constante negação da existência. É justamente o nascimento do pequeno Manolo que assegurou a permanência de Rosália e Chico Serrote na Fazenda Surubim.
– De sua formosura
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.⁶
O subjetivismo e o objetivismo são constitutivos do tema e da feitura do livro. Apesar de marcada pela subjetividade, a linguagem do romance mantém grande concretude, nas referências, da água da cisterna barrenta, à correnteza do amazônico Rio Roosevelt, até o “esgotado” Tietê. Há seriedade e boa-fé para com a palavra. O homem de pensamento, o geólogo, o professor habilitado nas ciências exatas persegue a adequação, a complexidade extrema da matéria assumida no nível da linguagem. Por muitas vezes, emergem a sinuosidade, a sensibilidade, a paixão, o cronista versátil e o poeta inspirado.
A desgraceira de Tião Pernambuco e Maria Tupinambá é obra de um escritor comprometido com a natureza, com o homem e com a sociedade, em sua comunhão: “um único imenso organismo”⁷. Um livro para quem quer saber o Brasil. Saber em sua raiz, sapĕre, ter sabor, sentir os cheiros, ver de onde migrou, a percepção da valoração, postular a experiência. Um livro para quem é capaz de “se deixar arrebatar pelo deslumbrante borrão de luzes do céu, ou pela lua que derramava um polvilho prateado sobre as árvores e as águas.”⁸ Um livro para os leitores de um inencontrável trem noturno...
“A aparência de serenidade escondia um coração ferido, retalhado, mas cicatrizado. [...] Suas desditas seriam convertidas na tenacidade que a vida reclama, inexorável.”⁹
1 MELO, Mário Sérgio de. “Os ramos de violeta”. Em: O MUNDO do trabalho – concurso nacional de poesias. Ponta Grossa: Ed. UEPG, 2001. p. 55.
2 Do livro Tercetos excluídos, Editora Estúdio Texto, 2020.
3 Do livro Canjica de castanha, Editora Estúdio Texto, 2019.
4 Do livro poemecos, ed. do autor, 2005.
5 Do livro A desgraceira de Tião Pernambuco e Maria Tupinambá, Editora Estúdio Texto, 2020.
6 MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina e outros poemas em voz alta. Editora José Olympio, 1980.
7 MELO, Mário Sérgio de. A desgraceira de Tião Pernambuco e Maria Tupinanbá. Editora Estúdio Texto, 2020. p. 79.
_____ . p. 77.
_____. Últimas linhas do romance.
Nota da coluna: Luísa Cristina dos Santos Fontes é Fundadora da Cadeira n. 5 da Academia de Letras dos Campos Gerais; Mário Sérgio de Melo é o Primeiro Ocupante da Cadeira n. 7.